#7 - Renasce uma estrela

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Os últimos levantamentos confiáveis revelam que existem vinte e seis mil, seiscentos e quarenta e dois restaurantes em Nova York. Isso mesmo, você não leu errado. E mais de dez mil deles estão em Manhattan. Você precisaria ir a 27,4 restaurantes por dia, ao longo de um ano inteiro, para conhecer todos os estabelecimentos existentes na ilha. Isso significa, em primeiro lugar, que aquele seu amigo que bate cartão uma semana por ano em Nova York e por isso diz conhecer tudo da gastronomia da cidade é, na verdade, uma farsa... Quer dizer também que, entre miniespeluncas e os deuses do Olimpo gastronômico, se cada restaurante daqui tiver em média cinco cozinheiros em sua equipe, Nova York teria mais de cento e trinta mil profissionais de cozinha andando à solta pelos quatro cantos. Sendo assim, se você morar em Nova York sua chance de ser vizinho de um cara que trabalha com facas, cutelos e fogo é bastante alta.

Do outro lado do balcão, Nova York tem aproximadamente oito milhões e meio de habitantes. Desses, um milhão e seiscentos mil moram em Manhattan. Estimemos livremente que dez porcento dessa população se importa muitíssimo com aquilo que come e bebe, lê com atenção acadêmica as críticas de gastronomia do New York Times, consulta a mais divertida plataforma de dicas de bares e restaurantes, The Infatuation, dia sim, dia não, e gasta cerca de três horas por semana reservando assentos nos lugares do momento através dos aplicativos especializados, de preferência pelo Tocq e pelo Resy. Temos assim que Nova York pode ser habitada neste momento por uma horda de algo como cento e sessenta mil foodies que, enlouquecidos e famintos, se preparam com afinco para devorar a cidade diariamente.

Dividindo hipoteticamente um pelo outro, dispensando as casas depois da vírgula, concluímos que para cada foodie há um cozinheiro em Nova York. E se nos lembrarmos daquele encontro inusitado na Grove Street, no West Village, que contamos semana passada neste “Devorando NY”, teremos que acreditar que as fadas que trabalham sem tirar folga na cidade decidiram que Missy Robbins seria a cozinheira da vida do foodie Sean Feeney. Pensando bem, as fadas deram sua contribuição, mas quem fez acontecer mesmo essa união foi Sean. Desde o dia em que se encontraram casualmente no hall do prediozinho da Grove Street, Sean só pensava em conquistar a amizade de Missy. Já pensou, ser amigo de uma chef de verdade? Ela podia lhe contar as histórias oficiais desse mundo que o fascinava, os segredos que os restaurantes guardam a sete chaves, as receitas mais espertas para impressionar os amigos naquele jantar lá em casa, os podres mais mundanos do mercado, e assim vai! Sean tinha uma paixão genuína pelo mundo da gastronomia e da hospitalidade, e nem sua mulher, Maria, conseguia entender aquela obsessão que ele desenvolvera por se aproximar de uma vizinha tão discreta e low-profile. Sean era focado e investiu toda sua simpatia e carisma em todos os contatos casuais que teve com Missy pelas escadas do prédio, nas ruas da vizinhança ou na deli de confiança do bairro. Foram meses de esbarrões fortuitos e brevíssimas conversas sobre amenidades, até que Sean tomou coragem e convidou Missy para um jantar em sua casa. E para surpresa dele, ela topou. Sean ficou feliz da vida com o aceite, mas rapidamente percebeu que tinha um problema: ele e Maria só sabiam cozinhar massas e em nível amador. Era isso que eles ofereceriam para o primeiro encontro com a vizinha especialista em alta gastronomia italiana? Alto risco com pouca chance de bom retorno, essa equação Sean conhecia bem e aprendera em Wall Street que deveria sempre manter distância máxima dela. Mas era tarde demais, o convite estava feito e ele não voltaria atrás.

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Sean e Maria deram o seu melhor para receber Missy, que adorou o tempero e, principalmente, o carinho daquele jovem casal que morava no andar de cima. O papo rolou solto até altas horas e uma amizade verdadeira entre vizinhos se iniciava, cercada por panelas, parmesão de qualidade e garrafas de bom tinto. Missy, Sean e Maria passaram a se frequentar e a contar uns com os outros. Entravam nos respectivos apartamentos sem tocar a campainha, usavam a dispensa alheia sem cerimônias e, sempre que possível, armavam jantares casuais que entravam pela madrugada no boêmio Village. Tornaram-se íntimos, trocavam ideias, dúvidas e confidências. Até que Missy passou a trancar a porta do seu apartamento. Sean estranhou a atitude e num primeiro momento achou que a amiga tinha viajado sem avisar. Mas dias depois percebeu que ela estava por ali, mas não queria contato, nem com os íntimos. Missy vivia o ápice de sua depressão logo após sua saída do A Voce e se trancava por longos dias em seu apartamento, isolada do mundo, num poço que parecia não ter fundo. Nesses dias, nem o astral dos novos amigos lhe fazia sentido. Sean e Maria entenderam o momento de Missy, mas, em vez de se afastarem, resolveram agir. Decidiram que não a deixariam cair numa fossa profunda e que, sempre que possível, estariam por perto tentando injetar energia e otimismo no dia a dia de Missy. Maria e Sean batiam diariamente à porta de Missy, levavam pequenos mimos, deixavam mensagens por debaixo da porta, a convidavam para os mais variados programas e ocasiões. Nem sempre Missy respondia, mas eles voltavam incansáveis no dia seguinte, até que ela aparecesse.

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Mas pouco a pouco, em grande parte graças à inacreditável persistência e interminável bom humor de Sean, Missy foi saindo de sua caverna psicológica. Passou a aceitar os chamados com maior frequência e, mais importante, foi sentindo novamente vontade de cozinhar. Mas nesse momento, surpreendentemente, cozinhar para Missy renascia com uma motivação que jorrava nova, natural e potente: cozinhava agora só o que gostava de fato, cozinhava ouvindo sua intuição, sem medo de ousar e de errar, sem amarras acadêmicas ou expectativas estelares, cozinhava, pela primeira vez em décadas, por puro prazer. Missy reencontrou milagrosamente sua paixão pela gastronomia a partir da vontade genuína de cozinhar para compartilhar afeto com aqueles que a queriam bem. E essa receita parecia irresistível. Os jantares na Grove Street foram ficando cada vez mais deliciosos e radicalmente alegres. A comida que Missy fazia para os amigos tinha uma emoção tangível que se transformava em um sabor inédito e viciante. Num desses jantares, Sean se declarou para Missy. Ele nunca comera pratos italianos tão originais, tão gostosos e tão básicos ao mesmo tempo. A cozinha caseira e afetuosa que Missy executava em casa para celebrar a amizade era a materialização mágica do simples perfeito. Sean enxergou que o resto da cidade precisava experimentar isso. E propôs à chef que eles abrissem juntos um restaurante que contasse essa história.

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Missy sorriu com carinho, mas respondeu a Sean com a sinceridade que sempre a marcava e que a intimidade que já tinham conquistado permitia: “Você enlouqueceu? Eu sou uma chef! Cozinhar pra mim não é uma brincadeira!”. Sean fez que entendeu, mas retrucou: “Talvez esse fosse o seu problema, você levava tudo muito a sério. Esta comida que você faz brincando para nós é a melhor que você já cozinhou em toda a sua carreira!”. Missy agradeceu mais esse gesto do vizinho, mas deu o encontro e o papo por encerrado. Sean obedeceu, mas intimamente oficializou aquela ideia como um projeto pessoal que perseguiria com a resiliência adquirida nos deals do FiDi. Ele estava convencido de que abriria um restaurante com Missy Robbins. Só ela não sabia disso ainda. Será?

 
 
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