#6 - Estrelas, para que tê-las?

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É muito comum até para nova-iorquinos da gema mergulhar na divagação “por que eu amo tanto esta cidade tão louca? ”. Preços, trânsito, sacos de lixo e sirenes exorbitantes seriam problemas suficientes para nos mantermos a milhas dessa ilha, mas eis que cá estamos.... Por que raios? A maioria dos moradores não gosta de dar “bom dia”, quase a totalidade dos taxistas não fala uma língua compreensível, absolutamente todos os entregadores de aplicativos de delivery de comida ignoram as leis de trânsito e tentam nos atropelar com suas esquizofrênicas bikes elétricas, o acesso aos melhores lugares do pedaço só se dá depois de enfrentarmos filas de dar ódio ou contas de meter medo... A lista de “sofrências” é significativa. Então por que tanta gente ama Nova York? Tenho eu também pensado muito sobre isso nos últimos meses, até porque faço parte “dessa gente”. Obviamente não tenho respostas para esse dilema afetivo, mas arrisco uma hipótese: Nova York é apaixonante porque é contraditória. Sempre que você acha que a desvendou, ela, num passe de mágica, o surpreende. Parece até que ela, a cidade, faz isso de propósito para nos avisar: “Hey dude, quem manda aqui sou eu! ”. Para gente como eu, essa prepotência misturada com opulência muitas vezes oprime, mete medo mesmo, mas, na maior parte do tempo, fascina. Outro dia, o Alexandre, um colega brasileiro que também está por aqui passando uma temporada, externou esse sentimento de uma maneira diferente: “Eu curto Nova York porque tenho a mais absoluta certeza de que nunca vou conhecê-la por inteiro”.

Nova York é um enigma insolúvel, talvez seja isso. Ela nunca nos permite decifrá-la porque, sendo esfinge mutante, inquieta e hiperativa, não se mantém jamais do mesmo jeito no tempo e no espaço. Em um segundo ela faz cara feia, para no outro dar de ombros como quem nem viu você passar..., mas logo no seguinte, ela pode o convidar para estrelar um conto de fadas. Duvida?

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Missy Robbins foi criada e educada com carinho e conforto por uma família de classe média da costa leste. Estudiosa e aplicada, ingressou na Universidade de Georgetown para cursar História da Arte. Chegou à faculdade com cabeça aberta e energia suficiente para ganhar o mundo. Mas, meses depois, sentiu um desconfortável vazio existencial, aquela angústia típica que aparece quando algo essencial está nos faltando... Entre livros e dúvidas, fez como quase 50% dos americanos (dado oficial): pegou um emprego de verão num restaurante honesto próximo a sua escola para defender uns trocados e respirar vida real. E, adivinhe, descobriu ali, num passe de mágica, a sua vocação. Foi amor ao primeiro corte: o espaço, a gente da cozinha e, mais importante, o ato de nutrir e divertir os outros lhe fizeram enorme sentido. A partir daí, aprender a cozinhar profissionalmente virou uma obsessão para Missy. Convenceu rapidamente seus pais de que queria mudar de rota 180 graus em direção à gastronomia. Eles consentiram, mas naquela família profissão era papo sério: se era pra ser cozinheira, tinha que ser com diploma; se era para sonhar em ser chef, que almejasse ser das grandes. Missy topou o desafio e se lançou numa odisseia de formação: em 1995 começou a estudar gastronomia na prestigiada Peter Kump’s New York School of Cooking (hoje ICE – Institute of Culinary Education) e rapidamente passou a estagiar em uma penca de restaurantes, desde os mais ordinários, casuais e divertidos até os seriamente estrelados, alternando experiências de ponta com outras menos glamorosas, mas que lhe dessem estofo, quilometragem e resistência. Nesse período, qualificou sua vocação ao descobrir uma paixão gutural pela cozinha italiana. Por isso, depois de terminar os estudos formais, fez as malas e se mandou para a Itália. Pulou de estágio em estágio, de osteria em trattoria, prioritariamente na Toscana, para só então, no final do período, trabalhar em cozinhas mais elaboradas, como a do restaurante Agli Amici, no Friuli. Voltou para os EUA transpirando soffritto, ralou em mais alguns cantos e só depois de dez anos vivendo intensamente o calor de variados tipos, tamanhos e acentos em dezenas de cozinhas, sentiu-se digna de ser chamada de cozinheira e preparada para assumir responsabilidades em restaurantes de alta expectativa e performance. Foi assim que em 2003 aceitou uma proposta para chefiar a equipe do Spiaggia, respeitadíssimo restaurante italiano white table cloth especializado em frutos do mar, criado e tocado pelo chef Tony Mantuano, na rica Chicago.

Missy se jogou na cozinha do Spiaggia por belos cinco anos como lhe ensinaram na Itália, ou seja, com passione. Sob o seu comando, o restaurante viveu excepcional fase e ganhou importantes prêmios nacionais e indicações de destaque da James Beard Foundation. Mas Missy sentia que ainda não chegara lá: vencer mesmo, para ela, era brilhar na cena gastronômica de Nova York. Por acaso ou destino, em 2008 os donos do A Voce, um icônico restaurante italiano e legítimo representante do estilo Upper Manhattan de ser, estavam em busca de um novo chef para conduzir sua esquadra. Missy abocanhou a oportunidade e voou orgulhosa para Manhattan para viver intensamente o sonho de chefiar uma cozinha de fine dining em dois diferentes endereços sofisticados da cidade – Madison Avenue e Columbus Circle. Trabalhava duro, às vezes por ininterruptas 16 horas diárias, liderando duas enormes e complexas equipes de um restaurante com “ambições Michelin”. Sim, pois até o bônus anual de Missy estava atrelado ao número de estrelas que ela conquistasse para o A Voce. No início, o desafio lhe pareceu saboroso. E lá então foi ela atrás das tais estrelas: em 2009 ganhou a primeira, para a unidade da Madison, e um ano depois garantiu o tão almejado selo para o A Voce do Time Warner Center. Pronto, Missy chegara lá: chef de duas cozinhas refinadas, única mulher americana detentora de duas estrelas Michelin à época, respeitada pelos comandados, admirada pela crítica e querida dos frequentadores do A Voce.  No papel, Missy vencera com V maiúsculo em Nova York. Mas na verdade, com o mesmo V, sabe aquele vazio? Reapareceu e foi crescendo a cada dia, transformando-se num grande buraco com cara de precipício: Missy, sem se dar conta, estava vivendo um burnout legítimo que a levaria a cair numa seríssima depressão. O fato é que o excesso de carga horária, péssima qualidade de sono, alimentação desbalanceada e uma sufocante pressão por manter à perfeição o desempenho de duas cozinhas obcecadas por conservar as estrelas conquistadas dragaram toda a saúde e a energia de Missy. A cozinheira apaixonada se transformou numa militar à moda antiga, mecânica e excessivamente dura com sua equipe e principalmente consigo mesma. Engordou mais de dez quilos, perdeu o bom humor, a paixão por criar e, principalmente, a motivação pelo seu ofício no dia a dia: Missy passou a odiar a cozinha, até não conseguir mais nem sequer entrar em uma delas. Esgotada, abriu mão de suas estrelas e de seu salário anual de seis gordos dígitos, pediu demissão do comando do A Voce e se trancou em seu pequeno estúdio num predinho da Grove Street, no West Village, para mergulhar solitariamente numa fossa que não parecia ter hora marcada para terminar.

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Sean Feeney nasceu e foi criado em New Jersey, no conforto e carinho de uma família típica da classe média. Deu sempre mais atenção ao esporte do que aos estudos acadêmicos, mas formou-se em Bioquímica na Universidade da Virginia, em parte para agradar seu pai, médico. Mas logo um dia depois de pegar seu diploma, se mandou para Manhattan para trabalhar no primeiro emprego que conhecidos lhe ofereceram, numa corretora de valores do Distrito Financeiro. Sean não sabia ao certo o que era uma ação, nunca tinha calculado juros compostos e não tinha a menor idéia como se fechavam negócios em Wall Street, mas, sim senhor, tinha total clareza de que vencer para ele significava ter sucesso em Nova York. Foi então confiante e cheio de energia para o trabalho ouvir com atenção suas novas atribuições: deram-lhe uma lista com nomes de potenciais investidores e lhe pediram que com eles se estreitasse relacionamento. O desafio lhe pareceu um tanto vago, mas, vá lá, divertido. Seu único problema era que lhe faltavam ferramentas básicas para dar até os primeiros passos... Sean percebeu rapidamente que, sem conhecimento técnico, ia ter que apelar para alguma estratégia alternativa. Meio no sufoco, teve uma ideia. Sean era um foodie radical, daqueles que declamavam de cor e salteado o endereço e o nome dos chefs dos restaurantes estrelados da cidade. Por que não usar esse conhecimento para entreter seus prospects? Pediu então para seu chefe um cartão corporativo com limite suficiente para usar e abusar nas mesas mais bacanas de Nova York. Sean jantava fora 7 vezes por semana em lugares que admirava e sobre os quais conhecia histórias, bastidores e curiosidades, e assim passou a encantar seus convidados. Sean descobriu ter talento para relacionamento e montou em pouco tempo uma invejável carteira de clientes qualificados para a corretora que lhe acolhera. Naturalmente, foi crescendo na carreira. Trocou duas vezes de endereço no “FiDi” em busca de maiores desafios e salários. Assim que as economias permitiram, fez uma extravagância e se mudou com sua esposa Maria para um simpático prédio numa tal Grove Street, no West Village. Sean estava super orgulhoso e feliz com sua carreira ascendente no famigerado mercado financeiro de Nova York, mas, nas horas vagas, sentia um certo vazio profissional, aquela deprezinha nos domingos à noite, antes de começar uma nova semana, sabe como é?

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Até que, voltando para casa após um duro dia de expediente, Sean abriu a porta do prédio da Grove Street e deu de cara com Missy Robbins. Fã do A Voce e conhecedor profundo da biografia e das receitas de Missy, Sean sorriu efusivamente para a chef, fazendo cara de quem queria uma self.... Apresentou-se todo animado como grande admirador e foi logo propondo um convescote gastronômico de aproximação entre vizinhos. Missy não estava com humor algum para fazer novos amigos, principalmente no hall de entrada do pequeno prédio onde amargava sua depressão. Mas, meio sem saber por que, gostou do astral do jovem yuppie que a reverenciou como pop star e lascou um “uma hora dessas nos encontramos...”. Semana que vem a gente conta que caldo deu esse mágico encontro entre vizinhos da Grove Street.

 
 
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