#12 - Ao mestre com carinho

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Foto: USHG website

Danny Meyer nem imagina (aliás, nem poderia, porque não tem a menor ideia da minha existência), mas ele foi meu grande professor de empreendedorismo gastronômico, matéria ausente na grade curricular de todas as faculdades brasileiras e área de atuação solitária e ultracarente de referências de impacto, exemplos vencedores e informações estruturadas. Persegui o mestre visitando suas casas, lendo Setting the Table com marca-texto, pesquisando artigos, entrevistas, fazendo um workshop imersivo em sua empresa e, mais recentemente, assistindo a algumas palestras suas ao vivo. Posso dizer que percorri com aplicação e rigor quase acadêmico o método Danny Meyer em uns seis passos.

No primeiro dia de aula, vi na prática os efeitos encantadores de suas mais essenciais convicções sobre hospitalidade preenchendo de energia o salão do Union Square Cafe, como já contei por aqui, uma passagem inspiradora que fez eu me conectar para sempre com essa matéria. Anos depois, tomei minha segunda lição quando Danny colocou seu método inteiramente à disposição nas páginas de Setting the Table. Ali aprendi sobre as raízes do conceito de hospitalidade (palavra que antes só associava a cuidados médicos) e sobre sua pioneira visão de como criar um projeto empresarial poderoso a partir da busca prioritária por sentido e bem-estar para os colaboradores: equipe feliz, clientes felizes, casa cheia!

Resolvi ler Setting the Table pela segunda vez e seguir no curso quando me dei conta de que Danny Meyer e sua trupe estavam por trás de casos de sucesso tão espetaculares quanto distintos, como Union Square Cafe (1985), Gramercy Tavern (1994), Eleven Madison Park (sim, Danny fundou esse emblema em 1998 e o entregou em 2002 para as mãos talentosas de dois discípulos – Daniel Humm e Will Guidara –, que o transformaram num dos grandes restaurantes do mundo), Blue Smoke (2002), The Modern (2005), Maialino (2009) e, last but not least, o irresistível e estelar Shake Shack (2001/2003). À época, eu e meus bons companheiros ralávamos para tocar e desenvolver cinco diferentes marcas de bares, restaurantes e lanchonetes São Paulo afora e vivíamos nos perguntando se nosso modelo de expansão era o mais correto e sustentável. Meu guru então reapareceu para uma terceira aula, nos ajudando a recolher pistas e mapear caminhos sobre um dos temas mais arriscados e angustiantes para todo empreendedor iniciante: por que e como crescer? Foi reconfortante saber que Danny também havia sofrido essas dores, formulado teses pessoais, testado, errado, aperfeiçoado e, finalmente, evoluído no tema. Relendo Danny Meyer, percebi com clareza que empreender em bares e restaurantes é um “esporte empresarial coletivo” e que a palavra-chave desse jogo é “equipe”. A conta parece simples: são elas, as equipes, que criam cardápios (instigantes ou banais), produzem comida (saborosa ou não…), que articulam experiências (inesquecíveis ou desprezíveis), que vendem produtos (ou apenas tiram pedidos) e que criam momentos de felicidade (ou de desespero!). Por que será então que todos nós demoramos tanto a compreender essa lógica e não priorizamos com atenção e energia máxima a construção de equipes de verdade em nossos bares e restaurantes desde o primeiro minuto? Percebi na vida real que não o fazemos logo de cara por cairmos numa armadilha funda produzida por uma combinação perversa de pecados capitais: preguiça, ignorância, medo e vaidade. Preguiça porque montar equipes vencedoras é um trabalho exaustivo e complexo, drena tempo, saúde e paciência; ignorância porque não há receita pronta para aprender e reproduzir um método; medo de falhar e não chegar a resultado algum; e vaidade por achar que a sua ideia empreendedora, seu talento individual ou sua conta bancária são suficientes para atingir o sucesso. Criar times qualificados é, de fato, um desafio altamente complexo, repleto de incertezas e decepções pela natureza de seu ingrediente essencial: gente! Estamos falando sobre amalgamar pessoas das mais diferentes culturas e crenças, que instantes atrás nunca haviam se esbarrado nessa vida, formando um corpo único que tem que se mover com a harmonia de uma canção de Tom Jobim. Daí, intuitivamente, evitamos colocar a mão nessa apimentada cumbuca… Os empreendedores mais céticos são sempre mais práticos: não acreditam ser possível montar equipes sustentáveis para um bar ou restaurante e assim entregam essa responsabilidade à sorte de deus… Ou seria ao diabo? Nós, empurrados por Danny, arregaçamos as mangas e nos lançamos na busca por formar equipes profissionalizadas, engajadas com nossa missão. Valeu a pena. A trajetória do Union Square Hospitality Group me permitiu criar uma máxima gastronômica vizinha a um pensamento exposto pelo gigante Michael Jordan falando sobre esportes de alto rendimento, que guiou nosso percurso: boa comida ganha jogos, equipe motivada ganha campeonatos.

Foto: USHG website

Depois de inaugurar e fazer acontecer com o Union Square Cafe, Danny Meyer passou longos nove anos aprendendo seu novo ofício e, naturalmente, pensando em como seguir em frente. Mas nesse divino momento, ainda curtindo os sabores da primeira conquista, lhe brotaram como praga questões clássicas de arruinar o sono de qualquer empreendedor: o sonho não era fazer da primeira cria um grande sucesso e ser feliz com isso? Por que arriscar mais uma vez? E se der errado, o projeto anterior será afetado? E se os clientes da primeira casa preferirem o novo rebento? Mas e se odiarem o mais novo, vão abandonar também o original? Será que eu vou dar conta de dividir meu tempo, carinho, braços e pernas entre dois negócios? Será que “mereço” mais um sucesso ou minha cota já se esgotou? E como deve ser a segunda empreitada: igual à primeira, para minimizar riscos e complexidades adicionais, ou totalmente nova, para satisfazer minha energia criativa e reafirmar minha potência inovadora pro mundo todo ver e aplaudir?

Foto: USHG website

Em 1994, Danny Meyer abriu seu segundo restaurante, o elegante Gramercy Tavern, convencido de que daria conta da extensa lista de dúvidas que lhe assombrava, se respeitasse uma regra que ele mesmo criara oportunamente para aquele momento: abriria novos restaurantes apenas a uma distância entre eles que ele próprio pudesse percorrer a pé. Isso viabilizaria suas visitas pessoais e supervisão atenta desses lugares diariamente. Danny não conseguira ainda dar jeito de implodir o dito popular inibidor de novos projetos segundo o qual “o olho do dono é que engorda o porco”. Mas a partir do seu quinto sucesso em série, todos no Midtown Manhattan, a passos da Union Square, encheu-se de coragem e apostou que, mais que sua barriga no balcão, seus princípios, sua palavra e a cultura que havia criado com seu povo comporiam o único corpo presente obrigatório em qualquer projeto que sua empresa criasse, fosse ele onde fosse. Assim, Danny Meyer e sua visão ganharam o mundo. Por mais que alguns jornalistas especializados e incansáveis programas de gastronomia na TV teimem em focar seus holofotes na celebrização de personagens, a grande estrela de um restaurante é a paixão que sua equipe tem por cuidar de seus clientes. Na linda trajetória vencedora do Union Square Hospitality Group foi esse o ingrediente responsável pela criação de uma seleção irretocável de restaurantes adorados e longevos que enriqueceram bairros e vizinhanças com a arte do conviver, pela reintegração de museus, hotéis e topos de arranha-céus de alta patente com a rua, através de gastronomia boa e acessível (dê uma olhada no Untitled, no lobby do Whitney Museum e no mais recente sucesso, Manhatta), pela transformação de um carrinho de hot dog numa empresa global que produz os mais deliciosos hambúrgueres de baixo preço da história e distribui suas ações na Bolsa de Wall Street (você sabia que o Shake Shack já está em Tokyo, Shanghai, Manila, Seul e Doha?) e, mais recentemente, pela estruturação de um fundo de investimento que compartilha recursos e ensinamentos com projetos promissores de jovens empreendedores – o Enlightened Hospitality Investments.

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Por fim, pensando tanto em Danny Meyer nessas últimas semanas, lembrei que talvez ele até se recorde de mim… Passei raspando numa prova de fogo, frente a frente com ele, em julho de 2016, quando participei do espetacular Creating Raves, um workshop de hospitalidade que sua empresa sedia e aplica ao longo de três dias, para interessados no tema da hospitalidade. Na hora final do curso, Danny faz uma aguardada e potente participação pessoal, conversando com o grupo e respondendo a perguntas. Confesso que estava intimidado pela proximidade com uma pessoa que tanto acompanho e admiro, mas achei que não poderia perder aquela oportunidade de interação. Saquei, respeitosamente, uma questão que julguei pertinente e relevante em alto e bom som:

 — Mr. Meyer, sou um fã convicto da linda cultura de hospitalidade da sua empresa. Mas o senhor acha que vai conseguir introjetá-la e mantê-la ao longo do tempo num projeto de escala global como o Shake Shack?

Meus colegas de classe me lançaram olhares carinhosos de aprovação e estímulo, a dúvida era boa, acho que acertara na mosca! Sorri orgulhoso e aguardei a resposta do mestre. Danny não hesitou:

 — Sua pergunta é tão difícil que não tem resposta… E quando isso acontece, é porque ela não era a pergunta certa a ser feita. Você deveria ter me perguntado: como nós vamos usar a riqueza de um negócio global de sucesso que construímos para fortalecer a nossa cultura de hospitalidade? Temos que enxergar o lado positivo dos nossos desafios, você não concorda?

Essa doeu, professor… Mas eu concordo. E aprendi mais uma!

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